Eu tenho uma amiga de longa data, a Falsiane. A conheço desde quando eu comecei a reconhecer o mundo a minha volta, talvez com uns 11 ou 12 anos. Falsiane é seu nome real, mas era conhecida por seu apelido: Realidade. Quando a conheci, apresentou-se como Realidade, uma pessoa sincera, honesta, concreta e, sobretudo, verdadeira. E assim a tratei por longos anos, Realidade. Ela ensinou-me a ser direto e objetivo com as palavras e sentimentos.
Entretanto, desde alguns anos, ela resolveu, ou melhor, eu fui atrás dela, e a encontrei combinando coisas estranhas, sobretudo para parecer mais bonita e atraente. Perguntei para ela:
– Por que você está usando tanta maquiagem, fez plásticas, não estou nem te reconhecendo? Ela respondeu:
– Para dizer a verdade é preciso criar ilusões. Ninguém se interessa pela Realidade sem roupa, nua e crua. Como preciso que as pessoas me admirem, crio ilusões de tudo. Você já reparou como as estórias inventadas são sempre mais bonitas e atraentes que as reais? Pois é, por isso as ilusões.
Neste momento, de revelações profundas sobre minha amiga Realidade, fui tomado por uma enxurrada de visões sobre como as coisas realmente funcionam, com as conexões entre os seres vivos de todos os espectros, as matrizes de ilusões usadas para amenizar a frieza da Realidade. Percebi como sentimentos de autoimportância, compaixão, autoestima, caridade e correlatos são ilusões vaidosas que criamos para amenizar a implacabilidade da Realidade; criamos o protótipo do homem bonzinho, aquele que todo dia posta “bom dia, amigos” em grupos sociais, mas, longe dos celulares e computadores, fala mal das pessoas e deseja muito mal aos outros. Aí minha amiga me disse que seu nome era Falsiane, pois a Realidade não era amada por ninguém. Agora, com este novo visual, minha amiga passou a ser adorada e chamada pelo nome antigo, paradoxalmente. Ou seja, agora que é a Falsiane, todos a chamam de Realidade. E ela atende por esse nome, mesmo toda maquiada, cheia de roupas lindas e caras; até sua voz é mais doce, suave e meiga. Agora ela tem bilhões de seguidores em todas as redes sociais, todos dizem que amam a Realidade. E mais, todos admiram as “verdades” que a Realidade posta nas redes sociais de todos os tipos. Eu disse a ela, muito chateado, puto mesmo, que ela deveria ter me ensinado tudo isto antes de eu ter me transformado em um porco-espinho. Não tenho mais energia para me transformar em um ursinho de pelúcia, bonitinho, peludinho, que todo mundo adora, mas não serve para porra nenhuma. E como tem ursinho de pelúcia nesse planeta.
A Realidade, ou melhor, Falsiane, atua e trabalha em todos os níveis dos relacionamentos humanos, desde os mais próximos, quando olhamos para o espelho, até questões globais. Tudo, absolutamente tudo, é uma ilusão. Falsiane consegue superar os melhores mentirosos do mundo, ela consegue enganar muita gente por muitíssimo tempo. A grande maioria das pessoas passa pelo mundo e morre sem conhecer a Falsiane pelada, pois a Realidade nua e crua é uma visão difícil para mentes fracas e cheias de vaidades. Aos olhos alheios, as pessoas que já viram Falsiane pelada parecem frias, estúpidas e amargas, pois aprendem que é totalmente desnecessário serem hipócritas e desconstroem sua autoimportância. Posso garantir, após o tempo necessário para os olhos se acostumarem ao brilho, a visão de Falsiane pelada é maravilhosa e extática. As pessoas que já vislumbraram essa imagem não mais precisam da aprovação alheia para seguirem com suas vidas e ganham apenas uma companheira sempre presente: a Morte. A Morte é a única companheira sempre presente em cada ato de nossas vidas. A Realidade apresentou-me a Morte, que é uma conselheira admirável. A cada dúvida, basta perguntar para a Morte que, ao contrário de Falsiane, não mente jamais.
Quem quiser reconhecer Falsiane agindo precisa fazer um pacto de sangue com ela, podendo chamá-la de Realidade. O pacto é doloroso, e depois é quase impossível retornar ao estado de uma pessoa comum, dessas que dizem “eu te amo” com a mesma facilidade que dizem “estou com sede”. Esse pacto é doloroso porque faz-se necessário admitir que as pessoas mais importantes para nós podem ser muito malvadas, interesseiras, egocêntricas e arrivistas, o que leva nosso pequeno mundo da autoimportância ao desmoronamento trágico e total. Quem conhecer Falsiane de perto deverá se acostumar com a vida de um porco-espinho. Mas tem vantagens, apesar de manter algumas pessoas interessantes distantes, também mantém muito distante as pessoas imbecis e dementes. Chega a ser pura diversão ver as atuações de Falsiane na vida cotidiana. Por exemplo, quando ela usa sua incrível capacidade de transformar as mais sórdidas traições em lindos contos de fadas e estórias de amor sublime, com direito a cupido que une casais e famílias de comerciais de margarina, com aplausos e choros de emoções.
Não faltam exemplos da atuação de Falsiane nesse mundinho que mais parece um curral contendo um rebanho manso e pronto para o frigorífico, que ela chama de Paraíso. A área onde a Falsiane atua com extrema destreza é a religião, ela consegue proezas como o seguinte diálogo genérico, mas não fictício:
– Como você pode acreditar nisso? Não faz o menor sentido!
– Mas está escrito na Bíblia.
– Você, por acaso, já leu este livro?
– Não, mas o pastor/padre me falou.
As pessoas acreditam num livro que nunca leram, e quem leu não acredita. Contradições que são obras de Falsiane. Ela me disse que falar a verdade, o que ela fazia há muito tempo como Realidade, levaria as pessoas a não se comportarem como desejam os poderosos, e isso poderia provocar violência desnecessária, melhor deixar as pessoas obedientes, apesar de ignorantes. Discordei, mas quem sou eu para argumentar contra a Realidade que me garante que o ser humano não está pronto.
Enfim, estou tentando aprender com Falsiane e não espernear por aí tentando mostrar fotos da Realidade pelada, assusta muito a imensa maioria dos moralistas e defensores dos bons costumes. Mesmo que esses costumes morais sejam transar com amigos dos companheiros, trair confianças, mentir em juízo, desprezar os menores indefesos, praticar violência contra os diferentes, ludibriar os sofredores com falsas promessas e obtendo lucros fantásticos, promover o ódio contra quem pensa diferente, torturas, destruição do ambiente em troca de dinheiro e poder, e toda uma imensa quantidade de disparates e maldades. Melhor mesmo é manter a Realidade reservada para correr para conhecer com mais detalhes outra pessoa maravilhosa, mas muito difícil de encontrar, a senhora Liberdade, que vive voando de gaiola em gaiola.
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