Passamos a vida inteira ouvindo que devemos sempre colaborar com a humanidade, seja fazendo grandes coisas, como descobrir novos remédios ou escrever para compartilhar descobertas ou conhecimentos, bem como pequenas coisas, como desejar bom dia ao vizinho ou dar um pão velho a um pedinte. Ouvimos, também, que devemos ter bons pensamentos, positivos ou, como dizem agora que virou nova moda global, auspiciosos, para que o mundo nos corresponda com uma vida boa, farta e feliz.

Minha dúvida atualmente é se tudo isto é realmente importante ou é apenas mais uma daquelas coisas que inventamos para enganar a nós mesmos, para dotar nossas vidas de algum sentido. Estórias como vida após a morte, paraíso eterno, setenta virgens esperando um terrorista suicida, messias que está chegando para nos salvar (salvar de quê?), pecados de vidas passadas para justificar o sofrimento atual, bem como outras inúmeras invenções que já não fazem sentido ou que acabaram de virar a grande verdade do universo. Por que tudo isto? Será que apenas para aliviar a consciência de que a morte chegará ou para dar uma pitada de emoção, como se vivêssemos num filme de suspense?

Nestes momentos de reflexão, sempre lembro de um grande e sábio amigo que contou-me sobre a vida dos siris. Vejamos como é a vida de um siri, pronto para ser servido para um turista na beira de uma linda praia. Após o bichinho ser coletado, por alguém que pouco se importa com o seu bem-estar, ele é colocado em uma lata, junto com vários outros siris na mesma condição. Até então os animais estão vivos, mas claramente irritados e querendo fugir da lata, coisa pouco provável que aconteça, pois lá está um menino com um pedaço de pau na mão para dar uma pauladinha no siri que tentar fugir da lata, que agora é seu mundo cheio de companheiros siris.

Para terminar o preparo da iguaria, é necessário o cozimento do infeliz crustáceo. Isto pode ser feito de duas formas: colocando-os vivos diretamente em uma nova lata com água fervente ou cozinhando-os lentamente em uma lata com água fria colocada no fogo. Na primeira opção, os siris que lutavam antes para fugir da lata são mortos rapidamente, sem muitas chances de negociação. Na segunda opção, cenário mais adequado para a comparação com a vidinha humana, alguns siris brigam entre si para escolherem o melhor lugar na lata, um lugar ainda mais fresquinho. Outros insistem em fugir da lata, mas lá está o moleque com seu pedaço de pau pronto para inibir a teimosa tentativa.

De qualquer forma, os siris serão fartamente comidos pelo turista, não importando suas brigas ou tentativas de fugas. Eles não fugirão de seu mundo-lata, nem que um daqueles siris apareça e diga aos outros que existe uma outra lata onde a água é fresca, o gramado verde e as fêmeas são lindas e não sentem dores de cabeça. Talvez a única coisa que aconteça é que alguns siris morram cozidos de forma resignada, aceitando os desígnios do moleque do pau. E assim segue o mundo dos siris na lata.

Comparando com o nosso mundo-lata, onde estamos presos e procurando o melhor lugar na lata ou de onde tentamos fugir, mas com deus, ou melhor, moleque do pau, tomando conta, podemos observar várias semelhanças e nos perguntar para que serve tudo isto. Para garantir o sustento do moleque do pau ou a prazerosa refeição do turista?

O momento que vivemos nos mostra que pouco ou nada adianta a luta por um mundo decente, pois a própria imagem de um mundo digno é feita por poucas pessoas que detêm o poder da informação, ou seja, o modelo de mundo ideal, certo e justo, é definido por um grupo pequeno que manda e desmanda. Assim, crescemos acreditando no que querem que acreditemos e lutamos por aquilo que querem que lutemos. São os moleques do pau controlando o mundo dos siris.

Assim, de que adianta dizer que esta crise econômica que aí está é armada por um grupo dominante? Para que argumentar sobre isto, se seremos chamados de idiotas com manias conspiratórias ou nem se darão a este trabalho? Adianta discutir sobre o aquecimento global e ponderar sobre a possibilidade de este aquecimento ser natural e cíclico e que a quantidade de carbono na atmosfera é consequência, e não causa, do aquecimento, se existe uma indústria altamente interessada no domínio do meio ambiente, fazendo toda humanidade trabalhar de graça por esta causa?

Existem outras questões menos abrangentes, como a justiça brasileira, onde os juízes, do alto de suas soberbas, julgam sem ler os autos devidamente, decidem coisas ilegais esperando alguém reclamar por justiça. Ou então, um cidadão que depende da defensoria pública vê sua luta por justiça se esvaindo pelos dedos, pois é comum o defensor nem aparecer em uma audiência. Esta situação é parecida com a do ensino público, só utiliza quem é pobre ou doido. Mas aí fica a dúvida, vale a pena brigar com um juiz e correr o risco de ser preso por desacato à autoridade (mas na verdade abuso de poder)? Ou então enfrentar a fila da defensoria e ouvir, da secretária e não da advogada, que ela fará o que for possível e que entrará em contato? Você só saberá dela de novo se você aparecer na repartição. E fazer o quê? Mandá-la para aquele lugar? Vai ser a mesma situação de reclamar da comida com o garçom, vai comer comida com cuspe, no mínimo. Além disto, corre-se o sério risco de ser preso, pois funcionário público, no exercício da função, pode mandar prender sem dó nem piedade; isto mesmo, aquele sujeito que anda devagar para fazer menos coisas no dia, enrola falando que não pode fazer nada, não depende dele, etc, tem o poder para prender alguém que perca a paciência com ele. Devemos engolir seco, sorrir para o barnabé e compactuar com a hipocrisia, se não o risco de pagar mais caro é alto. Somos ou não somos siris na lata?

Por falar em educação pública, eu lembro de um episódio muito ridículo, para não dizer revoltante. Um aluno do ensino médio de uma escola pública do interior do estado do Rio de Janeiro foi discriminado por ser bonito, branco, ter olhos claros e “cara de rico”, quando lhe foi negado o uniforme que normalmente é fornecido gratuitamente aos alunos, apenas pela justificativa de que ele não parecia precisar, poderia comprar o uniforme. E isto também acontece quando alguém mais bem vestido ou sem “cara de pobre” resolve usufruir do direito constitucional e universal do acesso à saúde pública ou justiça pública e gratuita. Não apenas os funcionários públicos agem com discriminação, os demais usuários comentam barbaridades, dizendo que o serviço público é para eles e que a dondoca ou o mocinho não deveriam estar ali, como se isto diminuísse o direito deles. Será que na Suécia ou Finlândia o serviço público não existe?

Sugiro aos antropólogos e sociólogos que deixem suas confortáveis cadeiras nas universidades escrevendo suas pesquisas, e partam para a pesquisa de campo, vivenciando situações como estas de forma totalmente camufladas. Se quiserem um bom trabalho com resultados bem próximos à realidade, basta ficarem pobres por um bom tempo.

Somos sempre lembrados que devemos lutar, pois a luta por um mundo melhor garante um mundo melhor. Se fosse assim, não existiria corrupção em nenhum governo, pois, desde a primeira comunidade organizada, alguém em uma função pública se corrompe. E a corrupção continua. Outro dia, em uma fila, ouvi uma conversa sobre a corrupção no governo, que hoje é muito maior e ninguém faz nada; para minimizar a raiva típica em uma fila, resolvi esticar conversa e perguntei ao cidadão se ele já tinha oferecido um agrado a algum guarda de trânsito, no que ele prontamente respondeu, mas gaguejando, que a situação era diferente, ele estava com a família no carro, etc. Dá para imaginar as milhares de justificativas esdrúxulas que alguém tem para fazer alguma coisa errada. A hipocrisia é dominante.

Para citar o setor privado, cuja eficiência normalmente é usada para justificar privatizações, uso como exemplo as companhias telefônicas, privatizadas há mais de 10 anos, com metas de universalização, parâmetros de atendimento aos clientes, níveis rígidos de qualidade, mas que são recordistas de reclamações nos órgãos de defesa do consumidor. Não bastassem as regras, todas as empresas recorrem às propagandas maravilhosas para justificar seus maravilhosos serviços; propagandas com pessoas bonitas, educadas, em um cenário lindo. Mas quando ligamos para o call center, a imagem real da empresa para o cliente, o sujeito que atende a ligação desconhece a língua do país, normalmente com sotaque de outra região que não é a do cliente, sem nenhuma paciência para ouvir as lamúrias do usuário desesperado, com a famosa frase “estaremos tentando providenciar seu pedido” e que ainda é capaz de apelar para a autopiedade reclamando que você o está ofendendo, e não à empresa. Todo mundo reclama disto, há mais de dez anos, e a situação continua como estava. Berramos e empurramos o siri do lado, mas o fogo continua nos cozinhando.

O que deveria ser exceção é regra, numa sociedade baseada na gestão patológica, como se resolvêssemos tratar todo mundo como doente ou que a doença fosse algo normal. Basta reparar nas reações que a sociedade e seus gestores têm quando acontece algum fato fora do normal e desagradável. Por exemplo, quando acontece um acidente por imprudência num cruzamento entre ruas sem semáforos, as autoridade instalam nas esquinas lombadas ou quebra-molas para evitar novos acidentes, ou seja, tratam toda a comunidade usuária como imprudente. Penalizam a maioria por conta dos imbecis que deveriam ser punidos, utilizando uma medida também ilegal, ou seja, o próprio estado reage quebrando as regras. Isto tudo é equivalente àquela sacanagem da professora de acabar com o recreio de todo mundo por conta da molecagem do Joãozinho; por simples raiva de poucos, o detentor do poder sacaneia todo mundo. E assim vamos vivendo no que definimos por civilização.

Como viver numa sociedade que prega a fé num livro cheio de sacanagens? Como filhas transando com o pai, irmão matando irmão, que o primeiro homem é fraco e se deixou corromper por uma cobra, que ter escravos é legal e fazer filhos com uma escrava é melhor ainda, fazendo guerra por ordem de um deus de amor, matanças de crianças, lançando maldições sobre inimigos e crucificando sacerdotes junto com ladrões. E para completar, criar uma imagem de povo sofrido e apelar para a piedade e estimular a compaixão pelo próximo para se dar bem.

Por isto, quando estou sem achar uma solução para a vida humana, especialmente a minha, recorro ao discurso de don Juan, o índio yaqui personagem de Carlos Castañeda, que defende a busca pela liberdade, que ele chama de liberdade do guerreiro. O mais interessante de seu pensamento é que esta liberdade deve ser buscada através da arte da espreita, usando de implacabilidade, esperteza, paciência e doçura, mas só é atingida de forma individual, mesmo que aprendida com outros xamãs. Ou seja, o siri só sai da lata se ele fugir sozinho. Este é o grande paradoxo: o ser humano que usa o ego, tido como o destruidor da humanidade, como a força coercitiva que mantém a humanidade unida, só atinge a liberdade se abandonar o ego e fugir sozinho.

Para perceber o ego como a força que mantém a humanidade como uma sociedade, basta pensar que só fazemos a maioria das atividades porque alguém está vendo e queremos parecer bons. Assim, para conseguirmos aparecer mais e cada vez melhor, precisamos trabalhar mais, estudar mais, ai compramos roupas melhores, carros melhores e vamos alimentando nosso ego até o limite da doença e da satisfação que damos ao social. Quem nunca ouviu uma repressão para não fazer algo porque o vizinho poderia ouvir? O que ele pensaria a respeito do suposto ato antissocial? Mas isto é assunto para outro texto.

Voltando ao assunto, é possível escrever um livro somente com a relação das hipocrisias, incoerências e sacanagens humanas. Eu costumo denominar isto de perversidade intrínseca do ser humano. Mas, pensando melhor, apenas fazemos aquilo que a natureza nos projetou para fazer, tentamos sobreviver a qualquer custo. Assim, aquela frase mal interpretada de Maquiavel e usada como contra-argumento pelas pessoas “boazinhas”, que diz que os fins justificam os meios, é verdade e verdade natural, ecológica.

Com a sensação de ser um siri na lata, berrando e esperneando sem efeito, resumo minha indignação pela hipocrisia humana reescrevendo duas frases muito adotadas pelos falsos santos da atualidade:

O senhor é meu pastor, ele bebe meu leite, tira meu couro e come minha carne; e

Deus sem você é deus, você sem deus é livre!

Alexandre Guimarães

06/06/2009

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